segunda-feira, 7 de maio de 2018

“Os Donos do Poder”: a impressionante obra de Raymundo Faoro

 2 MAIO '18 LUCAS BERLANZA
INSTITUTO LIBERAL


Difícil imaginar que alguém leia o monumental trabalho Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro (1958), do sociólogo, jurista e cientista político Raymundo Faoro (1925-2003), e não saia impactado da experiência. Em primeiro lugar, por ser muitíssimo bem redigido; assim como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982, autor do não menos importante Raízes do […]

Difícil imaginar que alguém leia o monumental trabalho Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro (1958), do sociólogo, jurista e cientista político Raymundo Faoro (1925-2003), e não saia impactado da experiência. Em primeiro lugar, por ser muitíssimo bem redigido; assim como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982, autor do não menos importante Raízes do Brasil), é um exemplo realmente especial de autor que seguiu uma trajetória de esquerda e cuja leitura nem por isso será menos prazerosa a um liberal clássico ou conservador.

Em segundo lugar, pela dimensão da empreitada operada por Faoro na constituição de sua obra magna. O autor consegue passar por séculos de história brasileira – e portuguesa -, com invejável riqueza de detalhes. O leitor mais interessado em história do Brasil e nos textos de nossos principais pensadores e estadistas reconhecerá algumas transcrições muito emblemáticas de artigos e discursos que marcaram nossa epopeia nacional.

Há trechos de José de Anchieta, ainda na fase colonial, defendendo os indígenas do suplício; a famosa declaração de Bernardo Pereira de Vasconcelos dando impulso ao movimento do “regresso” saquarema no Segundo Reinado, assim como as descrições do Visconde do Uruguai em defesa do movimento centralizador, da Lei Interpretativa do Ato Adicional e da reforma no Código de Processos; textos clássicos de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa e até a percepção de Campos Sales quando ao esquema funcional da República Oligárquica, explicando sua Política dos Governadores. Dos pródromos da aventura portuguesa até a ascensão da ditadura de Getúlio Vargas, Faoro oferece um retrato sintético bastante amplo de nossa saga política e não lhe escapam alguns de nossos maiores brilhos e de nossos melhores compatriotas.

Sua proposta geral, contudo, é desnudar algo que não é de se louvar: o legado patrimonialista, materializado através de uma tônica constante em nossa formação e desenvolvimento, aquilo que ele chama de “capitalismo politicamente orientado” – conceito mais genérico para o que modernamente se chamaria “Capitalismo de Estado”. Essa vinculação das práticas comerciais e das atividades econômicas a um estrato burocrático, encastelado diretamente no corpo do Estado, é algo que já foi muito bem resumido por autores como Ricardo Vélez-Rodríguez, que estudou a obra de Faoro, bem como a tradição weberiana a que ele se vincula, da qual é tributário justamente pela noção do “patrimonialismo”.

Em ensaio sobre o livro Patrimonialismo e a realidade latino-americana, de autoria do professor Vélez, que consta de nosso livro Guia Bibliográfico da Nova Direita, já resumimos essa mesma abordagem teórica. Bebendo da escola de Weber (1846-1920) e Karl Witfogel (1896-1988), a teoria, que Faoro vai reconstruir desde a formação de Portugal, particularmente a partir da Revolução de Avis (1383-1385), define patrimonialismo como “aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico”.

Tanto Faoro quanto Vélez citarão o liberal português Alexandre Herculano, um dos sustentadores da tese (muito cara a Faoro, que dedica muitas páginas a defendê-la) de que houve “ausência de feudalismo em Portugal”. Essa tese tem, de pronto, uma consequência positiva, que ressalta entre as contribuições de Faoro: a contestação do determinismo econômico do materialismo histórico marxista, que deixa de fazer sentido se as formas econômicas sequenciadas (do feudalismo teria de vir o capitalismo, para por fim despontar o socialismo) não se verificam como leis de progresso inescapáveis em toda parte.

Contudo, a ausência do feudalismo faz com que “a nobreza e a burguesia” jamais tenham “poder suficiente para se contrapor ao poder inquestionável do monarca. Assim, os nobres, mais do que de uma tradição que independesse da Coroa, dela recebiam o prestígio, sendo praticamente funcionários do príncipe”. Em consequência, no Brasil, institucionalmente erguido pela lavra portuguesa, se teria consolidado “um Estado mais forte do que a sociedade, em que o poder centrípeto do rei, no período colonial, e do imperador, ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal”.

Nesse sentido, Faoro vai, sem negá-lo e até exibindo muito respeito por suas elaborações, contrabalançar um pouco Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, no sentido de que procura demonstrar um grau um pouco maior de subordinação do patriarcalismo senhorial da colônia ao poder central da metrópole lusa, bem como um incremento desse poder quando da instauração dos Governos Gerais por substituição ao antigo modelo das capitanias e sesmarias. Ressaltará também uma importante associação de dependência dos senhores de terras ao longo do Império com credores da capital – portanto, do centro de poder, do centro burocrático-comercial -, fundamentais para sustentar o regime laboral escravo, como uma das provas de que sequer aqui houve efetivos traços de feudalismo. Desafiará também alguns simplismos reversos dos monarquistas, ainda que cometidos com a melhor das intenções, mostrando que a decadência desse sistema econômico e o desenvolvimento, sobretudo em São Paulo, de um regime laboral que depende menos do centro serão decisivos na proclamação da República, mais do que simplesmente a abolição da escravatura em si mesma, visto que nem todos os republicanos eram escravocratas.

Sustentará, porém, em resumo, que, ainda que se tenha temporariamente diluído para as oligarquias estaduais durante a República Velha, apoiando-se mutuamente no centro (a Presidência da República) para depois voltar a se concentrar amplamente com a Revolução de 30, esse sistema de absorção da parcela nuclear da vida econômica pelo que chama de “estamento” centralizado é uma constante na vida brasileira. Explicará o populismo varguista em parte como uma transposição para a crescente política urbana do espírito popular-rural, decorrente desse sistema, de procurar o “coronel”, o líder pessoal algo “messiânico”, mais que a impessoalidade das instituições.

Sua conclusão: “O estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título. A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação, impenetrável ao poder majoritário, mesmo na transação aristocrático-plebeia do elitismo moderno. (…) O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. (…) E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? (…) A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou”.

Apesar da forte impressão causada pela obra, alguns autores formularão críticas a seu teor que parecem bastante sensatas. Uma delas, constante do não menos impressionante A Querela do Estatismo (1994) de Antônio Paim (1927), é a de que Faoro subestimou amplamente o papel do Marquês de Pombal na introdução do viés “modernizador”, “protocientificista” do Estado patrimonial, como elemento de sua perpetuação e remodelação para as gerações posteriores. Essa subestimação pode levar a uma crença determinista de gênero distinto da estabelecida pelos marxistas, no sentido de se acreditar que, por arraigadas e poderosas que sejam as teias culturais do patrimonialismo e do consequente estatismo no Brasil, seria algo como uma lei natural inescapável permanecermos atados a elas. Outro problema, que Paim também aponta, é certa má vontade com o esforço liberal-representativo de construção do sistema político no Império, particularmente durante o Segundo Reinado, de que Faoro faz ressaltarem as deficiências, sem perceber que seu caráter aristocrático não era exatamente uma exceção em sua época.

Nada disso modifica nosso parecer: o livro é impressionante. Um trabalho de fôlego, ainda que, infelizmente, apropriado pelas esquerdas, tenha ensejado a ilusão de que o petismo chegaria ao poder para combater e eliminar essa herança patrimonialista, quando, em realidade, só a fez reforçada em tudo quanto esbanja de pior.

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