sábado, 31 de maio de 2014

Vedação ao retrocesso?

Somos um país de baixo índice educacional e, portanto, baixa capacidade de produção industrial de alto valor agregado, aquele mesmo que vende pouco e arrecada muito, tecnologia, sobretudo.

A agricultura é nossa saída, inclusive para se ocupar mão-de-obra de baixa escolaridade. Assim vejam o que o atual governo, tendo no garrote do bolso uma formidável base aliada no Congresso faz para inviabilizar nossa democracia.


Vedação ao retrocesso?
 KÁTIA ABREU
FOLHA DE SP  

Não respeitar a distância dos beliches entre si não significa trabalho análogo à escravidão; isso é bom senso!

O "efeito cliquet", que nasceu como jargão de alpinistas franceses que, a partir de um certo ponto da escalada, não podiam retroceder, acabou convertido em princípio que norteia a evolução de direitos fundamentais. Diz a doutrina jurídica que, uma vez consagrado um direito social, ele não pode mais ser diminuído e muito menos revogado. É o princípio da vedação ao retrocesso.

Como admitir, então, que a agropecuária brasileira, setor mais dinâmico --e um dos mais modernos e avançados da economia--, possa ser reiterada e insistentemente ligada ao retrocesso do trabalho escravo?

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, que tenho a honra de presidir, caracteriza-se pela defesa intransigente de princípios universais, como a liberdade. E não aceita, de seus membros, práticas que contrariem esses mesmos princípios.

A PEC do Trabalho Escravo, recentemente aprovada pelo Senado --por unanimidade, aliás--, prevê a expropriação de terras nas quais for constatada essa prática, destinando-as para a reforma agrária e para os programas de habitação popular.

Isso implica que se defina precisamente, na "forma da lei", o que significa "trabalho escravo". Não se pode deixar a critérios arbitrários uma definição cujas consequências são de grande alcance. Devemos, sobretudo, descartar qualquer viés político e ideológico nessa questão.

Com efeito, a ideologização pode configurar um risco à própria liberdade defendida. É evidente, por exemplo, que a servidão por dívidas não pode ser confundida com questões trabalhistas ou sanitárias, que são objeto de outra forma de legislação e de punição.

Se um produtor rural não seguir uma determinada regra no que diz respeito à distância dos beliches entre si, não estará ele abrigando uma forma "análoga" à do trabalho escravo. Trata-se de uma questão de bom senso!

Eis por que a definição do trabalho escravo deverá, reiteremos, ser dada na "forma da lei", tal como estamos propondo, em colaboração com o relator, senador Romero Jucá.

Busca-se, portanto, clareza nessa definição, como estabelece a convenção 29 da OIT:

a) submissão a trabalho forçado, via uso da coação e restrição da liberdade pessoal; b) proibição da liberdade de ir e vir, sendo o trabalhador obrigado a ficar em seu local de trabalho; c) vigilância ostensiva do trabalhador, com a retenção de seus documentos pessoais, d) servidão por dívida, obstaculizando a liberdade do trabalhador.

Note-se que, com essa definição, evitamos qualquer tipo de arbitrariedade, estando ela conforme ao que se caracteriza como atos essencialmente contrários à liberdade. A escravidão é contrária à liberdade, não podendo ser identificada, nem analogicamente, a qualquer tipo de descumprimento da legislação trabalhista.

Outra grave arbitrariedade são as chamadas "listas sujas" de pessoas física ou jurídica que, ao serem autuadas administrativamente, são imediatamente incluídas em um cadastro nacional, restringindo o seu acesso a financiamentos públicos e colocando-as sob os holofotes do opróbrio popular. Imaginem o dano causado a essas empresas, que têm, assim, a sua imagem e reputação profundamente atingidas mesmo sem ter sido condenada sequer na primeira instância.

Muitas vão à falência, sem ter mais nenhuma condição de sobreviver. Somos contra qualquer excesso do poder público, como tem acontecido com certas formas de discricionariedade de atuação dos agentes públicos.

Somos contra a existência das "listas sujas" já questionadas pela CNA no Supremo Tribunal Federal, elaboradas em ritos sumários na esfera administrativa, contrariando princípios básicos do direito, a saber, a presunção da inocência e o direito à ampla defe- sa. Apenas uma condenação judicial, transitada em julgado, poderia ter esse efeito.

Se, por outro lado, a Justiça encontrar fundamento para a condenação pela prática de cerceamento da liberdade, sob qualquer forma, deve-se aplicar todo o rigor da lei. A CNA não reconhece esses como produtores e, portanto, não os representa.
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domingo, 25 de maio de 2014

Um teste que fala ao nosso ouvido

 EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR


Carta aberta acusa exame internacional de transformar escolas numa verdadeira corrida de cavalos. Debate é legítimo, assim como a chacoalhada que a avaliação dá nos participantes acomodados


O Pisa (sigla em inglês para o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), quem diria, deu de receber mais vaias do que aplausos. O teste trienal para estudantes de 15 anos foi iniciado nos anos 2000, atinge 500 mil alunos, é de responsabilidade da OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – e até onde se sabia, gozava de prestígio entre os educadores. Os ventos mudaram de lado, com fúria. Neste mês, uma centena de educadores – a maioria deles de nações ricas – mandou uma carta aberta à OCDE, dando início a uma lavagem de roupa suja digna do Terceiro Mundo. O Pisa não lhes parece adequado. Estimula a competição “categoria safári”, fazendo com que as escolas se moldem a ele, numa lógica do “feito à imagem e semelhança” jamais visto desde a criação do mundo.

Ou seja, em vez de exercícios criativos, debates morais e outras propostas similares pautadas pelo prazer, passam a se preparar para ingressar no exército de Esparta, aumentando sobremaneira o grau de estresse dos alunos. Num tiro de misericórdia, os protestantes questionam por que cargas d’água a OCDE teria alguma relevância em tratar de educação, já que a escola não veio ao mundo para alimentar a economia. Passado o susto, a reação da elite que participa do Pisa pode ser vista como uma revolta natural, típica de gente que não se rende a saqueadores de mente e outras pragas. Entre os 65 países convidados – a última colocação do Brasil, em 2012, é um 58.º lugar – estão os países que ocupam o topo da educação, como nos nórdicos e alguns asiáticos; candidatos a ocupar o topo, a exemplo da Polônia, e convidados a uma participação especial, que passeiam por ali “sem compromisso”. É o caso do Brasil.

Para países cuja qualidade do ensino tem as variações de uma montanha-russa último tipo, o Pisa sempre soou como uma ótima oportunidade – para se divertir e para sofrer. Lado a lado de quem, para além de todos os discursos, conseguiu colocar a educação no primeiro plano, o teste possibilita, literalmente, saber em que ponto estamos. Em defesa do próprio Pisa, o diretor do projeto, Andreas Schleicher – em entrevista ao The Guardian – lembrou que o teste não foi feito para humilhar ninguém. Antes, nasceu para democratizar saberes, estratégias educacionais e não são poucos os países que tiram proveito dessa espécie de festa escolar globalizada. Muitos encontraram no Pisa subsídios para sanar suas misérias – incluindo misérias educacionais que persistem nos países endinheirados. Mais do que medidor autoritário de competências, o Pisa seria um distribuidor de competências. A última edição, por exemplo, apostou na “resolução de problemas”, uma recomendação pedagógica que torna a sala de aula bem menos enfadonha do que costuma ser. Algum problema nisso?

É provável que o Pisa não seja tão mau quanto o acusam. Não é um vilão disfarçado de avaliador. De qualquer modo, a carta aberta ajuda a considerar que a educação vive de fato o impasse da competência. Ao se render em demasia a expedientes torturantes do mundo corporativo, corre o risco de se confundir tanto com a empresa, a ponto de que não se reconheça mais como escola. Passar essa régua, delimitado até onde ir na testagem, é tarefa que exige perícia, um dilema que os educadores precisam enfrentar. Os descontentes reclamam que testes como o Pisa passam a pautar a pedagogia escolar. Aos que entendem que os testes ajudam a melhorar o desempenho da escola vale lembrar que a recíproca é verdadeira: instituições de ensino que confundem em demasia desempenho com aprendizado correm o risco de não se reconhecerem diante do espelho. Para o Brasil, o Pisa tem funcionado como um bom sabão. Tudo o que supúnhamos sobre nós se confirma a cada edição. Somos molengas no estudo da ciência, negligentes no ensino da matemática e damos muita folga nos exercícios de leitura, as três áreas contempladas pelo Pisa. Temos pagado caro por fazer bonito nos discursos pedagógicos e tropeçado nesses expedientes básicos que garantem todo o resto.

Muitos podem argumentar que não é preciso um teste internacional para nos jogar isso na cara. Já sabíamos. Mas como o Brasil está na moda e estamos adorando nos ver lado a lado com os outros – para saber qual é nossa real altura – a prova bem que nos deu um choque de realidade. Basta dizer que não há país desenvolvido no mundo com tantos índices capengas. É um sinal. É um recado. Para estar lá – onde os esforçados poloneses querem estar – vamos ter de ralar: no criativo, no lúdico e na vida como ela é. O Pisa pode até não nos representar, mas fala ao nosso ouvido.

A classe C, do paraíso ao inferno

GAUDÊNCIO TORQUATO
O Estado de S.Paulo 

Mais uma pista a indicar o andar da carruagem. Parcela da população brasileira é arrastada para cima e para baixo da pirâmide social pelas ondas de marés enchentes e marés vazantes. A primeira carrega as pessoas da classe C, a chamada nova classe média, para um passeio pelos territórios do grupo B, às vezes com direito a uma escapulida (rápida) ao topo, onde habita a categoria A. Quem propicia a subida é grana extra. A segunda empurra o contingente para as águas do fundo. Isso se dá quando a renda das famílias fica apenas no parco rendimento de aposentadoria, pensão ou bolsas, sem os ganhos com bicos e atividades paralelas. No sufoco do bolso apertado, quem foi induzido a consumir e se vê sem condição de ressarcir despesas passa a usar de maneira indiscriminada cartões de crédito e a resvalar pela inadimplência.

Tal radiografia, flagrada por pesquisa encomendada pelo Consultative Group to Assist the Poor, organismo ligado ao Banco Mundial, e exposta neste jornal (18/5), pode explicar fenômenos que estão a ocorrer no País a partir de manifestações de movimentos organizados e categorias profissionais.

Ponderável parcela da classe média que muda de condição, muitas vezes de um mês para outro, acaba ingressando no perigoso meio-fio da instabilidade, tornando-se ela própria um dos eixos a mover a engrenagem da insatisfação social. A expressão desolada de um microempreendedor sobre seus ganhos mensais arremata a situação que abriga milhões de brasileiros: "Ganho algo entre nada e R$ 5 mil; não dá para adivinhar quando e quanto vai entrar".

A insegurança que grassa por classes, espaços, setores e profissões tem-se avolumado nos últimos meses, apesar de a taxa de desemprego se manter estável (em torno de 5% em março nas cinco maiores regiões metropolitanas). A questão é a baixa qualidade do emprego, que leva muitos a buscar outros meios de sobrevivência. Ademais, o cobertor social tem sido curto para cobrir novas demandas. A precária estrutura de serviços não tem recebido do Estado alavancagem para oferecer bom atendimento ao povo. Portanto, por causa do estranho fenômeno que aqui se forma - uma classe C mutante que tateia na escuridão entre as portas do céu e do inferno, passando pelo limbo - as pessoas decidiram abrir a locução sob propícia temperatura ambiental.

As políticas sociais do governo, é oportuno lembrar, abriram buracos. A decisão de implantar gigantesco programa de distribuição de renda - elogiável, porquanto se vive, hoje, o menor nível de desigualdade de nossa História - não tem sido acompanhada de uma política educacional estruturante, capaz de elevar o grau civilizatório de milhões de pessoas que ascenderam na vida. Basta avaliar a estratégia de indução ao consumo, adotada pelo governo brasileiro para enfrentar a crise por que passaram as economias mundiais, a partir de 2008. Ouçam-se especialistas, dentre eles Celso Amâncio, ex-diretor da Casas Bahia (Estado, 18/5): "O governo incentivou o consumo, mas crédito é uma coisa e poder de compra é outro". Quer dizer, o banco até oferece crédito, mas os novos consumidores não dispõem de educação financeira. Acabam usando e abusando de cartões de crédito, um pagando o outro.

O governo forjou, de um lado, o populismo econômico para abrir as portas do consumo aos grupos emergentes, mas, por outro, deixou de lhes oferecer ferramentas (e valores) que balizam comportamentos da classe média tradicional. A cesta de compra dos emergentes inchou: TV por assinatura, internet, plano de saúde, escola privada para os filhos, moto ou carro novo. A ignorância em matéria financeira acabou estourando o bolso de tantos quantos achavam ter encontrado o Eldorado.

Sob essa engenharia se pode compreender o movimento das "placas tectônicas" que causam sismos nas camadas do centro da pirâmide. Como se recorda, o losango tem sido apresentado como o formato do novo Brasil: de topo mais espaçado, alargamento do meio e estreitamento da base. Acontece que o saracoteio da classe C - que ora dança na pista do meio, ora na de baixo - não permite apostar na substituição definitiva da pirâmide pelo losango. O que se vê na configuração é um redemoinho nas camadas centrais, a denotar insatisfação e impactos que afetam a vida de milhões, principalmente os habitantes de grandes cidades, cuja rotina sofre com congestionamentos, mobilizações, greves e paralisações de frentes de serviços públicos.

É verdade que parte considerável da tensão urbana se deve ao momento especial do País: vésperas de Copa do Mundo e de campanha eleitoral. A estratégia de sensibilização do poder e de atores políticos ganha fôlego. Mas é inegável que há uma força centrípeta em ação, aqui mais forte e organizada, ali mais tênue e dispersa, dando a impressão de que o gigante "deitado eternamente em berço esplêndido" faz parte da retórica do passado. A dissonância forma-se em nossa mente quando somos levados a cantar (sem interpretar os versos) nosso belo Hino Nacional.

Remanesce a questão: para onde as altas e baixas marés carregarão a classe C (que soma 64 milhões de pessoas) e, ainda, que consequências serão sentidas em outros conjuntos? A hipótese mais provável é que, a continuar o vaivém dos grupos emergentes, os sismos continuarão a balançar o losango e este voltará a dar lugar à velha pirâmide. As conquistas obtidas com os avanços dos programas de distribuição de renda estariam comprometidas. Reflexos (pressões, contrapressões, conflitos, demandas) aparecerão na malha de toda a classe média (cerca de 100 milhões de brasileiros). As marolas geradas por impactos no meio da lagoa acabarão chegando às margens.

Em suma, enquanto as famílias de classe média se mantiverem "enforcadas", o nó apertará o gogó de outros habitantes da pirâmide. O Brasil terá de voltar a crescer, de maneira forte e sadia, sem usar o esparadrapo de paliativos sociais.

O governo da anarquia

SACHA CALMON
CORREIO BRAZILIENSE 

Em conferência em Salvador, Clóvis Torres, jovem e talentoso advogado, estampou uma citação da Ayn Rand: "Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada". O Brasil agora é o exemplo mais completo de frase de Ayn Rand, bem perto do que os gregos mais temiam, a anomia (ausência de aplicação da lei) a abulia (falta de vontade) e da anarquia (ausência de governo).

O povo está descrente. Primeiro, houve a falência do Estado, como agente da ordem e da lei. Traficantes e quadrilhas despacham armas, narcóticos e contrabandos tranquilamente pelas fronteiras terrestres e nos portos brasileiros, desde Belém até Paranaguá. Não temos guarda-marinha. As fronteiras continuam terra de ninguém. A violência tomou conta do país e assola tanto o rico como o pobre, o nacional e o estrangeiro.

Em paralelo, houve a falência do governo, infestado de corruptos e corruptores. Nove ministros foram tirados. Houve o mensalão. Não há como desmerecer o ministro Joaquim Barbosa e a Corte indicada por Lula. Os escândalos na Petrobras deixam a nação estarrecida; 39 ministérios e 33 partidos tornam o pais ingovernável.

Finalmente, há a falência da gestão da casa pública. O Brasil detinha o 11º lugar como país da energia mais cara no início do mandato de Dilma Rousseff. Agora está em 4º lugar, após a derrapada da Medida Provisória nº 579. Dizem que, em 2015, alcançaremos o pódio nesse item. No atual governo, a Petrobras viu suas ações perderem dois terços de valor na Bolsa. No entanto, para se reeleger a presidente segura os reajustes dos preços dos combustíveis. Quando forem soltos, a Petrobras estará descapitalizada e a inflação dará um salto, pois tudo é movido a petróleo, gasolina e diesel.

Está na ordem do dia no Congresso a compra superfaturada da refinaria de Pasadena, nos EUA, mas ela não é nada diante dos cambalachos da refinaria de Pernambuco. A Petrobras deu carta branca para que seu ex-diretor da área de abastecimento Paulo Roberto Costa negociasse a contratação de fornecedores e aditivos para as obras da Refinaria Abreu e Lima e tomasse decisões sem submetê-las ao conselho de administração ou à diretoria da estatal. Essa liberdade, apurou o Valor, significou a aprovação de mais de R$ 6,5 bilhões em contratos e aditivos para a refinaria.

Os fatos começaram com Lula, mas se deram até 2012, já no governo de Dilma. O distanciamento que a alta cúpula da Petrobras mantinha das decisões do conselho da refinaria ficou claro no depoimento do ex-presidente da estatal José Sergio Gabrielli à CPI da Petrobras. Ele minimizou o fato de o conselho ter assinado mais de 150 aditivos. "Não é tanto aditivo. Sabem quantos contratos tem a Refinaria Abreu Lima? 260." É o fim da picada. O estouro do orçamento da construção da Refinaria Abreu e Lima e os indícios de que o negócio fracassaria não impediram que os seus administradores dessem aumento "milionário" para o teto de seus próprios salários no período de Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, que estava preso e acaba de ser solto pelo ministro Teori Zavascki, embora não tenha ele fôro privilegiado por prerrogativa de função. Os demais detidos continuam presos.

A Abreu e Lima se transformou na obra mais cara do Brasil, entre todas do PAC. A presidente da Petrobras, Graça Foster, reconheceu que a companhia cometeu erros na execução das obras da refinaria: "Temos um custo mais alto no custo da refinaria (SIC). Tivemos diversos erros e acertos". A piada são os "acertos". Quais?

Os mais pobres estão cansados da corrupção governamental, das filas no SUS, de gastar três horas para ir e voltar do trabalho, da carestia crescente, da falta de educação, da insegurança de suas vidas, da bagunça generalizada, das ricas obras da Copa. Não há retórica nem marqueteiro que dê jeito nessa situação.

Dias piores virão, após as eleições, seja lá quem for o eleito. No entanto, a má situação atual é o resultado de 12 anos de governo do PT, sem falar na deterioração da infraestrutura do país.

Mas o pior é aterrorizar o povo dizendo que as conquistas do PT, leia-se Bolsa Família, serão desfeitas pela oposição. A tática é meter medo nos miseráveis. Isso é lá partido que se deva prezar, numa democracia madura? Eles temem, em verdade, é a apuração de 12 anos de malfeitos na hipótese de perderem a eleição, algo a que devemos dar a devida atenção.

Ser ou não ser

JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO 

Não parece haver, nem de longe, o entusiasmo anterior. Ninguém discute a escalação do time, ninguém pintou rua ou fachada

Acho que já tive a oportunidade de referir-me aqui às muitas glórias futebolísticas de Itaparica. Poderia estender tais glórias a diversos outros esportes, mas estes estão sujeitos a controvérsias, como a protagonizada por meu saudoso amigo Luiz Cuiuba, já lá se vai algum tempo. Em acalorada discussão no Largo da Quitanda, ele sustentou que as Olimpíadas eram uma jogada ardilosa para subverter nossos valores mais caros e, principalmente, trocar nossas lindas mulheres pelos bagulhos dos gringos. Baseado na conformação física de algumas atletas estrangeiras que vira na televisão, notadamente as campeãs de lançamento ou levantamento de pesos, ele não conseguia compreender como aquelas jamantas descomunais podiam ser o ideal olímpico. Claro que era para ludibriar a gente. Queriam convencer-nos a nos livrar de nossas mulheres, afamadas em todo o mundo pela sua excelsa formosura, e, em troca, recebermos ideais olímpicos, Deus que nos protegesse daquelas baleias parrudas, opinião esta acatada pela grande maioria dos presentes.

Portanto, para não entrar em terreno muito polêmico, fico no futebol, suficiente para render diversos volumes de histórias. Difícil é saber por onde começar. Nasceu em Itaparica, por exemplo, Chupeta, o maior jogador de futebol que os céus do Brasil jamais cobriram e ainda há testemunhas que não me deixam mentir. Foi com um time itaparicano que ocorreu um evento singular, já lembrado aqui, mas merecedor de nova menção. Num jogo, se não me engano, contra uma agremiação de Maragogipe, Vavá Paparrão fraturou a perna em dois lugares, mas só notou depois que o jogo acabou e o sangue esfriou. Finado Nascimento, respeitado no futebol e na clarineta, era o juiz de maior autoridade no Recôncavo e grande disciplinador, chegando a aplicar cascudos em certos atletas de conduta particularmente reprovável.

Em matéria tática, houve muitas inovações na ilha, que não foram à frente por uma série de circunstâncias. Assim ocorreu com o esquema bolado pelo técnico e cartola Júlio Perrengue, o injustiçado 10-10, que nunca foi adotado por ninguém, mas devia ter tido uma oportunidade. Júlio me explicou uma vez que o esquema dele consistia em fazer os dez jogadores de campo saírem de bolo para cima do adversário, arreganhando os dentes e dando gritos de guerra, assim infundindo terror nas hostes opositoras. Menção se faça, outrossim, a avanços notáveis que, por falta de marketing, se perderam, entre eles o jogo eólico, que consistia em usar os ventos do dia em proveito do time. Antigamente, isso era feito com a ajuda de um mestre de saveiros conhecedor íntimo dos ventos e das virações, mas hoje deve ser programável para computadores. Por exemplo, o jogador sabe que, naquele instante, o vento forte tal ou qual vai soprar e aí cobra o escanteio conforme o dito vento, é uma coisa altamente científica, que a ilha já praticava em priscas eras.

Nas Copas, como em todos os eventos que envolvem a nacionalidade, nossa participação nunca faltou. A de 1950 foi trágica, com gente passando mal, revolta ou até rompimento com os santos e outros eventos traumáticos, até hoje recordados pelos mais antigos. A de 1954 não valeu, por causa de Mr. Ellis, um juiz inglês, cujo nome nunca esqueci, vastamente denunciado como ladrão pelos narradores e comentaristas e responsável claro pelos quatro a dois que a Hungria nos aplicou. Houve pancadaria no estádio, durante e depois do jogo, e vários conterrâneos se ofereceram para combater na guerra que viria, contra a Inglaterra, a Hungria, as duas juntas ou quem lá fosse, pois que nunca corremos de guerra.

Na nossa primeira Copa, em 1958, lançamos aos ares a campanha Seca Lidirrólmi para a final. Lidirrólmi, na pronúncia local, era Liedholm, artilheiro da Suécia que fez o primeiro gol do jogo contra o Brasil. O brado “seca Lidirrólmi!” prorrompeu do Jardim do Forte e rasgou as nuvens por sobre todo o Recôncavo. Jamais alguém havia sido secado daquela forma tão unânime e simultânea. Vozes despeitadas podem negar, mas o fato é que Lidirrólmi não fez mais gol nenhum, e, naquele dia inesquecível, como sabemos, o time dele perdeu de cinco a dois.

Desta feita, contudo, não parece haver, nem de longe, o entusiasmo anterior. Ninguém discute a escalação do time, ninguém pintou rua ou fachada, ninguém comprou bandeira nova para pendurar em cima da varanda. Que estaria acontecendo? O patriotismo que parecia ser parte indissociável do DNA itaparicano foi atacado por algum vírus destrutivo? Graves questões, acompanhadas do pressentimento de que o mundo vai acabar, ou qualquer coisa assim. E mais lenha foi lançada à fogueira depois do pronunciamento de Zecamunista. O festejado líder subversivo voltou, como sempre vitorioso, de um concorrido torneio de pôquer em Ipiaú e, ao chegar ao Bar de Espanha e ver que se falava sobre a Copa, começou um imediato discurso em que afirmou que era dever de todo patriota brasileiro ser contra a Copa.

— Nós vamos organizar uma grande manifestação, uma passeata geral! — disse ele, com o punho no ar. — Essa Copa não é nossa, é deles! O povo da ilha sairá em peso às ruas para protestar!

E, segundo ele me informou ao telefone, a coisa ficou séria e a ideia da passeata recebeu a adesão de praticamente toda a ilha.

— Mas agora eu tenho de desligar, não posso perder a reunião da organização da passeata, que vai ser daqui a pouquinho.

— Eu pensei que já estava tudo organizado.

— Mas não está — disse ele. — Eu descobri que temos que mudar a hora da passeata para todo mundo ter tempo de ver o jogo.

Amigos da inflação e seus disfarces

GUSTAVO FRANCO
O GLOBO 

Arsenal de pretextos para a complacência com a inflação é uma espécie de ressurreição torta da ‘inflação estrutural’

As primeiras teorias sobre a inflação eram como a cartografia primitiva: roteiros para a imaginação muito mais que representações científicas e confiáveis da verdadeira geografia.

A inflação surgiu mais ou menos na mesma época e lugar que o “papel moeda”, sendo muito natural e espontâneo que se associasse uma coisa à outra. Afinal, a inflação é a perda de poder aquisitivo da moeda, simples assim.

No Brasil, entretanto, logo emergiu uma visão alternativa e imaginosa que tomava emprestada à engenharia uma palavra que mudaria para sempre nossa maneira de olhar as mazelas da economia: dizia-se que a inflação brasileira era “estrutural”.

Esse palavreado nos colocava em pleno Quartier Latin e, com toda razão, conferia a devida complexidade ao fenômeno, que deixava de pertencer às más intenções de governantes fabricantes de papel pintado e passava ao domínio de criaturas temíveis, como os monstros que ilustravam os espaços vazios dos mapas de antigamente: latifúndios, gargalos, cartéis e pontos de estrangulamento. Tinha-se, assim, de forma nem tão sutil, uma transferência da culpa pelo problema, um truque de grande impacto sobre os debates públicos sobre o combate à inflação.

A “inflação estrutural”, em suas múltiplas encarnações, sempre compreendia uma variação recorrente de um preço importante, geralmente os de alimentos, mercê da (supostamente) baixa produtividade no setor causada pela estrutura agrária dominada pelo latifúndio, e da repercussão viciosa do “choque de oferta” patrocinado pelos oligopólios e oligopsônios.

Não era uma boa teoria, tanto que caiu para a gaveta das curiosidades próprias dos primeiros anos em que o fenômeno se apresentou. Mas a mensagem central resultou duradoura: essa inflação que tinha “raízes no setor real” deveria ser combatida através de reformas que atacassem “estruturas”, agrária ou de classes sociais, de tal sorte que parecia tolo pensar que a política monetária pudesse afetar o poder de compra da moeda. A estabilização apenas ocorreria com a reforma agrária, ou com o socialismo.

O legado mais duradouro e popular da “teoria da inflação estrutural” era tão simples quanto devastador: a (suposta) inutilidade das políticas de estabilização convencionais, argumento que ainda soa como poesia para os amigos da inflação.

Poucos se dão conta da importância e da contundência desse drible dado pelos “estruturalistas”: nunca se fazia uma defesa aberta da inflação, mas um ataque às políticas monetárias ortodoxas e à austeridade. Em retrospecto, deveria ser claro que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” e que os “estruturalistas” estavam trabalhando a favor da inflação, às vezes admitindo “expropriar os rentistas”, ou “tributar a riqueza ociosa”, um argumento que frequentemente se associava a Lord Keynes.

Porém, os “desenvolvimentistas” sempre conseguiam se afastar da (autoria da) inflação, que se tornava, assim, uma criatura órfã, um mal impessoal, um cadáver sem o assassino para se tornar um inimigo público. Quem eram os amigos da inflação? Não deveria ser difícil apontar os culpados, mas o fato é que o Brasil nunca teve um rosto para tornar o patrono da inflação. Quem percorrer os cadernos de imagens dos livros sobre a inflação, como o da jornalista Miriam Leitão, vai encontrar fotos de prateleiras vazias, máquinas de remarcação e cédulas cheias de zeros ou carimbos, mas nenhum economista desses que criticam os “métodos convencionais” de combate à inflação.

Em tempos mais recentes, os amigos da inflação ampliaram o arsenal de pretextos para a complacência com a inflação com uma espécie de ressurreição torta da “inflação estrutural”, eis que a inflação observada no segmento de serviços do IPCA — que está rodando na faixa de 10% anuais — estaria associada à ascensão da classe média, processo desejável, uma espécie de “inflação do bem”, refletindo fenômenos fora do alcance da política monetária. O inflacionismo estaria em busca de uma aliança com o politicamente correto.

Há enorme heterogeneidade dentro de “serviços” no IPCA, com uma infinidade de histórias sobre mercados específicos. Há fenômenos associados ao ciclo imobiliário (aluguel, condomínio, estacionamento), outros às ventanias do turismo (passagens aéreas, hotéis, motéis, espetáculos), e os serviços que incluem componentes digitais (celulares, internet, fotocópia). Há a “inflação médica”, decorrente de mais “tecnologia embarcada”, mas o setor seguramente possui economias de escala, o mesmo valendo para os serviços educacionais. E há os itens afetados pelo salário mínimo (consertos e serviços pessoais), e também a deflação dos eletrônicos (duráveis, ou mais baratos ou melhores).

O que há de comum nesses enredos?

Existem centenas, talvez milhares de histórias sobre mudanças de preços relativos, vale dizer, sobre “inflação (ou deflação) estrutural”, pois o sistema de preços está sempre a vibrar, como um organismo vivo e irrequieto. Quem tem cinquenta teorias sobre inflação estrutural na verdade não tem nenhuma. Se existe algum traço comum em cada uma dessas narrativas de “choques de oferta” é que todos os preços são denominados na mesma moeda, que pode valer mais ou menos dependendo da política monetária.

A verdadeira discussão não é sobre se a inflação nos serviços é “benigna”, mas sobre complacência com a inflação. A alusão a uma nova inflação estrutural serve apenas para trazer de volta uma tese conhecida e maléfica: se há uma boa explicação “não monetária” para a existência da inflação, segue-se que a política monetária não funciona, ou produz um desemprego desnecessário para corrigir o incorrigível.

A própria presidente disse recentemente que reduzir a meta de inflação de 4,5% (na verdade 6,5%) para 3% faria o desemprego pular para 8% ou mais.

De onde saiu essa matemática?

Se fosse verdade, a redução na taxa de inflação de 916% para 5%, observada entre 1994 e 1997 (taxas acumuladas para o ano calendário), teria criado um caos. Em vez disso, o desemprego oscilou de 5,1% para 5,7%. Para quem não é do ramo parece mágica, não é mesmo?

O fato é que as autoridades governamentais prosseguem com o velho truque de antagonizar o combate à inflação e não a inflação, assim se esquivando canhestramente de fazer uma defesa aberta dessa sua criatura amiga, órfã apenas na aparência, e que parece nascer de causas naturais sem que ninguém lhe dê o que comer.

Quem são os amigos da inflação?

Basta olhar para os inimigos do combate à inflação.

Hora de mudar o foco

 ARMINIO FRAGA E MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP 

Proteção e incentivos a setores selecionados resultam em grupos de interesse que tendem a dificultar reformas que beneficiem a sociedade

A política econômica retornou ao centro do debate com seu sucesso em estimular o consumo, porém não o investimento e o crescimento. Pouco se discute o lado da oferta, onde se encontra o maior desafio: aumentar a produtividade da economia, essencial para a convergência dos padrões de vida da população aos dos países mais ricos.

O debate sobre políticas públicas esbarra na carência de evidências robustas que auxiliem a sua avaliação, sendo frequentemente dominado por crenças preconcebidas. A experiência de outros países pode ser útil para a discussão, como nos parece ser o caso da Austrália.

Na década de 1920, a Austrália criou um Conselho das Tarifas (de importação). Tal conselho tinha por objetivo encorajar o desenvolvimento de setores eficientes, o que por anos foi feito por meio da recomendação de crescente proteção tarifária. Na década de 1960, no entanto, o conselho se conscientizou do dano que essa proteção vinha causando à eficiência econômica e ao crescimento. Essa conclusão levou a uma interessante evolução institucional.

Após duas etapas na década de 1980, quando o conselho se transformou primeiramente na Comissão de Assistência Setorial e depois na Comissão Setorial, foi finalmente criada em 1998 a Comissão de Produtividade, que tem por missão fazer estudos e recomendações sobre como melhorar a produtividade e o desempenho da economia.

O ponto mais importante do seu mandato pode ser encontrado no topo da lista de princípios que o regem: todas as políticas devem ter como preocupação o bem-estar da comunidade como um todo, e não os interesses particulares de um grupo ou setor. Esse deveria ser o foco de todas as políticas públicas no Brasil.

Outros objetivos da comissão são promover a redução de regulamentações desnecessárias, estimular setores eficientes e competitivos internacionalmente, facilitar mudanças estruturais, levando em conta os interesses daqueles afetados por reformas, e garantir o desenvolvimento ecologicamente sustentável.

O contraste com a Argentina é notável. No começo do século 20, Austrália e Argentina estavam entre as economias mais produtivas do mundo. Durante as décadas seguintes, no entanto, ambos os países adotaram crescentemente medidas de estímulo à indústria doméstica e elevadas tarifas de proteção ao comércio exterior. Progressivamente, os dois países foram ficando atrás das economias mais desenvolvidas.

Na década de 1980, a Austrália apresentava taxa de crescimento anual da produtividade menor que a da maioria dos países da OCDE, inclusive a Grécia. A Argentina, por sua vez, enfrentou sucessivas crises econômicas, e seu PIB per capita caiu para 30% do americano.

Nas últimas décadas, os dois países fizeram opções distintas de política econômica. A história argentina é bem conhecida, com medidas heterodoxas à esquerda e à direita, pouco controle das contas públicas e forte intervenção governamental.

A Austrália fez outra escolha: a da redução progressiva do protecionismo, acompanhada da avaliação das políticas públicas, e a criação de agências independentes do Estado com metas de desempenho, inclusive o Banco Central.

Políticas de desenvolvimento baseadas em proteção, subsídios e incentivos a setores selecionados resultam no estabelecimento formal e informal de grupos de interesse, que dependem da sua manutenção. Esses grupos tendem a dificultar reformas que beneficiem a sociedade como um todo. No caso da política econômica, essa dificuldade é ainda maior pela impossibilidade do contrafactual, ou seja, aquilo que poderia ter ocorrido caso a escolha tivesse sido outra.

A saída passa por adotar critérios e regras de políticas públicas voltados ao interesse maior da sociedade, promover avaliações regulares e independentes dessas políticas e garantir ao público o acesso a informações que permitam o contraditório.
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Ainda a estagnação do crescimento

JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
O Estado de S.Paulo 

Viajei esta semana a Cuiabá para participar de um evento e levei um choque. Embora soubesse que lá a preparação para a Copa não ia bem, a situação ao vivo e em cores mostrou-se muito pior do que imaginava. No aeroporto, a única coisa pronta é a parte velha e tudo indica que pouco vai mudar até o dia 13 de junho, data do primeiro jogo a ser lá realizado. Apanhar um táxi é uma aventura, tal é o estado da praça em frente ao terminal de passageiros. A jovem que vendeu o tíquete da Cooperativa pediu que tivesse cuidado para não ser atropelado, dada a confusão de veículos.

O aeroporto fica no município de Vargem Grande e é relativamente distante do centro de Cuiabá. Todo o trajeto foi feito por ruas secundárias, numa incrível confusão viária. As vias principais estão em obras e não me parece que estarão adequadamente prontas até junho. Finalmente, o mais incrível é que a construção do veículo leve de transporte (VLT) está no seu início, mas os buracos ocupam o canteiro central da avenida. Com humor resignado, um executivo de lá me disse que até a Olimpíada a obra deverá ficar pronta. Pena que o evento seja realizado no Rio de Janeiro.

O descrito acima ilustra uma realidade bastante clara. O efeito econômico da Copa será muito menor do que o imaginado por seus organizadores. Os investimentos serão muito menores do que os prometidos, concentrando-se mais nas próprias arenas, boa parte das quais ficará completamente subutilizada nos anos subsequentes, uma vez que não há torcida que preencha minimamente muito dos estádios (meu filho, André, informou-me que a última final do campeonato amazonense foi assistida por pouco mais de 3.100 espectadores), incluindo grandes eventos musicais. Poucos investimentos que deixariam efeitos multiplicadores permanentes, como metrôs, VLTs, trens e outros do tipo, foram realizados.

Além disso, a Copa pouco empolgou a população, como mostrou pesquisa recente do Datafolha, quando 66% das pessoas consultadas disseram que o evento trará mais prejuízos do que benefícios para o País. Essa percepção reforçou uma situação de redução nas expectativas de consumidores e produtores, acelerando a queda na atividade. Não apenas os produtos associados à Copa venderam pouco, como boa parte do comércio relata uma alta inesperada de estoques, levando muitos fornecedores a reduzir a sua atividade. A Whirlpool, por exemplo, acaba de dar férias coletivas para 5 mil dos seus funcionários, reforçando o movimento de outros setores importantes, como o setor automotivo. É bastante provável que alguns desses funcionários sejam dispensados nos próximos meses.

Os inúmeros feriados dos próximos dias também contribuirão para a redução das vendas, produção e PIB. Como as pesquisas mostram, as expectativas empresariais também estão sendo afetadas pelas incertezas e custos associados à energia elétrica, e a taxa de investimentos deve se manter relativamente estável, similar ao baixo nível dos últimos anos.

Não tenho dúvida que deveremos rever, para baixo, nossa atual projeção de 1,3% para o crescimento do PIB deste ano, ainda mais uma vez.

Com esse cenário, a estagnação econômica dos últimos quatro anos estará mais do que caracterizada. Um período longo como esse revela algo estrutural e não um evento fortuito. Fica demonstrado que algumas das hipóteses utilizadas pela política econômica atual se mostraram totalmente equivocadas, a saber:

(1) Um pouco mais de inflação não criaria problemas. Desde que o teto da meta não seja ultrapassado, tudo estará bem. Como se sabe, não apenas a inflação deste ano vai ultrapassar o teto da meta, como a redução e controle artificial de preços de energia e de transportes tem de ser mantida a qualquer custo;

(2) Bastaria estimular a demanda, que a oferta cresceria. Na realidade, isso até aconteceu, mas o que cresceu mesmo foram as importações. Que o diga a indústria;

(3) Os investimentos subiriam com o tamanho do orçamento do BNDES e outros bancos públicos, bem como no volume de incentivos (ou como gosto de chamar, caramelos) tributários. Os dados do IBGE mostram a estagnação na taxa de investimento brasileiro em níveis compatíveis apenas com crescimento modestíssimo, como o dos últimos tempos;

(4) Os investimentos subiriam em decorrência de um intenso ativismo governamental que criasse "modelos" para as operações das empresas. O desastre do setor elétrico ilustra bem o que ocorreu;

(5) A economia cresceria puxada por uma elite de super campeões nacionais. Além de não existir crescimento, vários desastres empresariais recentes mostram a fragilidade da proposição. A realidade é que não existirão muitas empresas campeãs globais num sistema pouco competitivo. E o Brasil vai muito mal no quesito competitividade. O indicador do IMD, divulgado na semana passada, mostra que, nos últimos quatro anos, o Brasil perdeu posições, caindo do 38.º lugar para o 54.º, num grupo de 60 economias analisadas. Como colocou o professor Carlos Arruda (da Fundação Dom Cabral e coordenador do estudo), "entre 2010 e 2013, o Brasil vinha perdendo posições relativas, porque a competitividade de outros países vinha aumentando. Agora, em 2014, aconteceu algo diferente, a perda foi absoluta. O Brasil perdeu para ele mesmo. A competitividade, de fato, diminuiu".

Os casos de sucesso, como a Embraer, ainda são exceções e resultam de um processo de longo prazo e de condições especiais. Ainda assim, como mostra a própria Embraer, não haverá campeões de verdade sem um desenvolvimento tecnológico contínuo e consistente. O exemplo da cadeia do agronegócio é ilustrativo: seus custos (de mão de obra, logística e tributários) têm subido como em todos os outros setores da economia. Entretanto, a cadeia é competitiva porque há uma contínua elevação da eficiência e da produtividade, que permite a absorção de maiores despesas sem perda de competitividade nos mercados globais.

Como não me canso de repetir, crescer não é fácil. Discursos triunfalistas não resolvem o problema.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O objetivo é doutrinar



Revista Veja – 07/05/2014

O doutor em economia fez a prova de conhecimentos gerais do Enade e concluiu que as respostas tidas como certas se baseiam em Ideologias e opiniões, e não em fatos



Engenheiro e doutor em economia pela Universidade de Chicago. Claudio Haddad. 67 anos, sofreu, digamos assim, uma reprovação no campo acadêmico. Ele resolveu fazer, só de curiosidade, a prova de conhecimentos gerais do Enade, o exame do Ministério da Educação para os recém- formados nas universidades. Segundo o gabarito oficial do MEC, ele errou metade das questões. Como assim? Haddad, que preside o Insper, faculdade que fundou em São Paulo com o nome lbmec, em 1999, depois de quinze anos como sócio do Banco Garantia, está desatualizado? Nada disso. O defeito é da prova, que não se propõe a medir conhecimento, mas a aferir o grau de alinhamento do candidato com a ideologia em voga em Brasília. Diz Haddad: “E uma prova com viés ideológico, alta dose de subjetividade e um olhar simplista sobre as grandes questões da atualidade”.

O que o motivou a fazer uma prova de conhecimentos gerais para recém-formados? 

Meus alunos se saíram mal, e quis entender em que tipo de conhecimento eles patinavam. Passei o olho nas questões em uma cópia do teste. Eram enunciados enormes, que me deram a impressão de conter alto grau de subjetividade. Por isso, resolvi fazer a prova duas vezes. Na primeira, respondi tudo da maneira que julguei a mais correta: na segunda vez, assinalei as opções que imaginei serem aquelas que os avaliadores considerariam acertadas por terem um viés mais ideológico. Resultado: à luz de meus conhecimentos, errei quatro de oito questões de múltipla escolha. Ou seja, um fiasco. Já na versão que fiz com o único intuito de dar as respostas que os examinadores queriam, fui muito bem. Acertei sete. Só errei mesmo uma em que, sinceramente, apesar de ter me detido nela inúmeras vezes, até agora não vi lógica.

O senhor está dizendo que a prova foi mal formulada? 

Sem dúvida. Não se pode dizer que uma questão de conhecimentos gerais que se fia num viés político e ideológico e abre espaço para interpretações subjetivas seja bem formulada. Uma boa prova deveria se basear em fatos objetivos, e não em crenças.

Dê um exemplo de como o viés ideológico aparece no Enade? 

Uma das questões que mais me espantaram pede aos estudantes que reflitam sobre ética e cidadania, marcando as definições que expressem bem os dois conceitos. Uma das alternativas diz que, sem o estabelecimento de regras de conduta, não se constrói uma sociedade democrática e pluralista, terreno sobre o qual a cidadania viceja como valor. Está correto. A outra enfatiza que o princípio da dignidade humana é o avesso do preconceito. Também está certo. A zona de sombra paira sobre a terceira proposição, a que o MEC considera correta. “Toda pessoa tem direito ao respeito de seus semelhantes, a uma vida digna, a oportunidades de realizar seus projetos, mesmo que esteja cumprindo pena de privação de liberdade, por ter cometido delito criminal, com trâmite transitado e julgado”. Isso é apenas uma divagação opinativa do formulador da prova sobre como seriam as condições ideais de vida de um preso. Existem maneiras bem mais objetivas e lógicas de testar o conhecimento do candidato sobre ética e cidadania.

E por que o senhor discorda da afirmativa?

Como alguém que cometeu um crime e está preso pode ter garantido o seu direito de realizar “projetos” como os demais cidadãos? É, antes de tudo, um absurdo lógico. Vejo aí uma condescendência típica de certas organizações de direitos humanos, que brigam indiscriminadamente por tudo o que é benefício para o preso: visita íntima, saída à vontade da cadeia. Isso, aliás, está bem em voga no Brasil. Faz parte do caldo ideológico incapaz de ver uma questão tão complexa sob todos os prismas.

O desprezo pela lógica é o pior defeito das questões do Enade?

A imposição de uma maneira de pensar é igualmente danosa. Uma das perguntas faz uma longa digressão sobre os jovens de hoje, que preferem ficar fechados em seu quarto mexendo no computador e jogando videogame a passear pela praça. 0 texto prega que a imersão no mundo eletrônico desvia a atenção das crianças dos impactos dos danos ambientais. A prova pede que o candidato escolha o título mais adequado para o texto que acabou de ler. Minha opção foi: “Preferências atuais de lazer de jovens e crianças: preocupação dos ambientalistas”. Errei. Para os avaliadores o título correto é: “Engajamento de crianças e jovens na preservação do legado natural: uma necessidade imediata”. Esse não é o título mais adequado para o texto, aliás de péssima qualidade. O que se tem no conjunto de texto e resposta é uma combinação de subjetividade total com pregação ambientalista. A questão não tenta medir o conhecimento do candidato. mas saber quanto ele está enquadrado na maneira de pensar oficial.

Qual é a origem dessas distorções?

Para mim. Está claro que o Enade deixa à mostra o modo torto de ver o mundo da maioria de nossos educadores. Eles são mergulhados nessa ideologia antiempresa, antilucro, antimercado já nas faculdades de pedagogia. Depois tratam de plantar essa visão na cabeça dos estudantes.

Essa é uma característica exclusiva da educação brasileira? 

Não. Há um movimento atualmente na França destinado a revisar o ensino de economia, que com o tempo foi se tomando distorcidamente anticapitalista. Está sendo difícil na França restaurar o equilíbrio. No Brasil a situação é pior. Aqui o discurso ideológico se mistura com a falta de conhecimento. O resultado é desastroso. É o triunfo de uma concepção de mundo simplista e equivocada. Gostaria de saber quantos desses pregadores leram Marx e Adam Smith no original. Sim, porque tem muito professor por aí que se baseia em textos curtos e apostilados para ensinar. A prova do MEC é um espelho dessa simplificação. O conhecimento verdadeiro consiste em entender realidades complexas, e não em contorná-las com resumos empobrecedores e enviesados.

Qual a consequência imediata disso?

A radicalização. O discurso ambientalista é um exemplo. Tomou-se uma sucessão de bandeiras e pregações alarmantes com evidente desprezo pela lógica e pela objetividade. A intervenção humana no meio ambiente é ensinada apenas como uma “agressão”. Muitas vezes faltam inteligência e informação na utilização racional dos recursos materiais, mas isso não significa que é impossível agir sobre a natureza sem provocar tragédias ambientais. As crianças também aprendem na escola a repudiar a Revolução Industrial inglesa, lembrada apenas pelas condições de trabalho miseráveis. Mas a miséria já estava lá bem antes e foi justamente com a Revolução Industrial que, pela primeira vez na história da humanidade, a riqueza aumentou exponencialmente para todas as classes. As economias cresceram, a renda per capita se multiplicou e os governos puderam arrecadar mais e implantar programas sociais. Mas a ideologia em voga demoniiza a Revolução Industrial. Isso não é educação de qualidade.

O Enade sofre dessa miopia em relação aos processos econômicos?

Sim. Em um alto grau. Uma questão sobre a crise financeira mundial de 2008 é a prova disso. O texto da pergunta diz que a desregulação dos mercados americanos e europeus levou à formação de uma bolha de empréstimos especulativos e imobiliários que, ao estourar, desencadeou a crise mundial. Falso ou verdadeiro? Para o MEC, é verdadeiro; para mim, falso. Para o MEC, o certo é pôr toda a culpa no sistema. Ponto. Com essa ênfase ideológica, perdem-se dimensões importantes para entender as razões da crise. A frouxa política monetária do Fed, o banco central americano, teve muito a ver com a crise. Como teve seu papel o incentivo do governo americano à concessão de crédito imobiliário mesmo para quem, claramente, não poderia pagar. Essas ações de Washington foram decisivas para que o mercado de casa própria inflasse em bases irrealistas. Mas a lente ideológica manda apontar a desregulamentação dos mercados como a causa da crise financeira. Isso não é produção de conhecimento, mas simplesmente a divulgação de uma visão equivocada.

Por que as universidades brasileiras ainda são tão pouco inovadoras mesmo se comparadas às de outros países emergentes?

Entre as instituições públicas de elite, dois fatores pesam contra a corrida pela produtividade: elas têm verbas garantidas e o grosso do dinheiro é distribuído sem considerar o relevo da produção científica de cada uma. O princípio do igualitarismo pode até soar bacana, mas contém em seu DNA uma armadilha perversa. Para que todos progridam no mesmo ritmo, o avanço de uns é refreado em função do passo mais lento de outros. Cadê a meritocracia? Nos Estados Unidos, as melhores universidades recebem mais recursos do que as de menor desempenho – e isso não é por acaso. É mérito.

Na última década, o governo federal incentivou a abertura de universidades com o intuito de fomentar certas regiões carentes de ensino de qualidade. Isso ajuda? 

É clara essa preocupação em espalhar universidades por todo o território brasileiro, sob o discurso do desenvolvimento regional, mas, para mim, isso significa desperdiçar dinheiro baixando o nível de todos. Sim, porque o dinheiro é finito e a pulverização dele impede os melhores de chegar a um patamar ainda mais alto.

Alguma coisa melhora no ensino superior brasileiro?

Temos centros de excelência já conectados com o mundo lá fora. Poderíamos ter muito mais competição, porém. O economista Edward Glaeser faz uma colocação muito interessante em um de seus livros quando diz que as universidades americanas não resvalaram para o corporativismo justamente porque tinham de competir urnas com as outras. No Brasil, nunca ouvi falar de uma turma de cientistas de um determinado centro de pesquisas preocupada em correr para superar o trabalho de outro grupo. Também não vejo ninguém consternado com o fato de que sua instituição não está entre as melhores do mundo nos rankings. A preocupação em gerar recursos adicionais, então, é algo mais raro ainda.

De quem e a culpa? 

Vejo claros problemas de gestão e governança nas universidades públicas. Meu pai foi sub-reitor da UFRJ e não se conformava com o aluguel baixíssimo que a universidade recebia do Canecão. Ele achava que tinha de vender a casa de shows, que assim entraria mais dinheiro no caixa. Mas as resistências internas a qualquer iniciativa que mexa na velha maneira de fazer as coisas são tão grandes que não se faz nada. A UFRJ tem instalações no Rio de Janeiro inteiro. Por que não vender uma parte, concentrar tudo numa mesma área e otimizar recursos? Ai entra uma série de interesses específicos. Tem até o grupo que diz: “Mas está bom assim; a universidade é do lado da minha casa”.

O forte elo entre universidades e empresas ajuda a explicar o alto poder inovador de muitos países. Como o Brasil está nessa área?

O Brasil vem melhorando, mas precisa romper de vez com uma ideologia antiga segundo a qual a parceria com o mercado é vista como ameaça à autonomia universitária. Bobagem. Todas as grandes instituições de ensino superior americanas recebem dinheiro de empresas e não se privam com isso de sua liberdade criativa. Ao contrário: são as maiores fornecedoras de prêmios Nobel do planeta. Se o pesquisador ficar isolado em sua torre de marfim, dificilmente produzirá conhecimento relevante. Mas percebo, inclusive pelas conversas dos alunos em minha escola, que surge no Brasil uma geração de mente mais aberta e empreendedora. Ela é essencial para a criação de um ecossistema favorável à inovação e à produção de riqueza.

Quais as características desse ecossistema?

Empreendedores, inovadores, academia, empresas e financiadores trabalhando juntos. São Paulo reúne condições para a criação disso, que se vê em ebulição em lugares como Boston e Tel-Aviv. Estamos falando de criar no Brasil uma cultura que tenha na produção de conhecimento seu maior valor.



quarta-feira, 14 de maio de 2014

Professores, acordem!


GUSTAVO IOSCHPE
REVISTA VEJA

Normalmente escrevo esta coluna pensando nos leitores que nada têm a ver com o setor educacional. Faço isso, em primeiro lugar, porque creio que a educação brasileira só vai avançar (e com ela o Brasil) quando houver demanda pública por melhorias. E, segundo, porque nos últimos anos tenho chegado à conclusão de que falar com o professor médio brasileiro, na esperança de trazer algum conhecimento que o leve a melhorar seu desempenho, é mais inútil do que o proverbial pente para careca. Não deve haver, nos 510 milhões de quilômetros quadrados deste nosso planeta solitário, um grupo mais obstinado em ignorar a realidade que o dos professores brasileiros. O discurso é sempre o mesmo: o professor é um herói, um sacerdote abnegado da construção de um mundo melhor, mal pago, desvalorizado, abandonado pela sociedade e pelos governantes, que faz o melhor possível com o pouco que recebe. Hoje faço minha última tentativa de falar aos nossos mestres. E, dado o grau de autoengano em que vivem, eu o farei sem firulas.

Caros professores: vocês se meteram em uma enrascada. Há décadas, as lideranças de vocês vêm construindo um discurso de vitimização. A imagem que vocês vendem não é a de profissionais competentes e comprometidos, mas a de coitadinhos, estropiados e maltratados. E vocês venceram: a população brasileira está do seu lado, comprou essa imagem (nada seduz mais a alma brasileira do que um coitado, afinal). Quando vocês fazem greve – mesmo a mais disparatada e interminável –, os pais de alunos não ficam bravos por pagar impostos a profissionais que deixam seus filhos na mão; pelo contrário, apoiam a causa de vocês. É uma vitória quase inacreditável. Mas prestem atenção: essa é uma vitória de Pirro. Porque nos últimos anos essa imagem de desalento fez com que aumentassem muito os recursos que vão para vocês, sem a exigência de alguma contrapartida da sua parte. Recentemente destinamos os royalties do pré-sal a vocês, e, em breve, quando o Plano Nacional de Educação que transita no Congresso for aprovado, seremos o único país do mundo, exceto Cuba, em que se gastam 10% do PIB em educação (aos filocubanos, saibam que o salário de um professor lá é de aproximadamente 28 dólares por mês. Isso mesmo, 28 dólares. Os 10% cubanos se devem à falta de PIB, não a um volume de investimento significativo).

Quando um custo é pequeno, ninguém se importa muito com o resultado. Quando as coisas vão bem, ninguém fica muito preocupado em cortar despesas. E, quando a área é de pouca importância, a pressão pelo desempenho é pequena. No passado recente, tudo isso era verdade sobre a educação brasileira. Éramos um país agrícola em um mundo industrial; a qualificação de nossa gente não era um elemento indispensável e o país crescia bem. Mas isso mudou. O tempo das vacas gordas já era, e a educação passou a ser prioridade inadiável na era do conhecimento. Nesse cenário, a chance de que se continue atirando dinheiro no sistema educacional sem haver nenhuma melhora, a longo prazo, é zero.

Vocês foram gananciosos demais. Os 10% do PIB e os royalties do pré-sal serão a danação de vocês. Porque, quando essa enxurrada de dinheiro começar a entrar e nossa educação continuar um desastre, até os pais de alunos de escola pública vão entender o que hoje só os estudiosos da área sabem: que não há relação entre valor investido em educação – entre eles o salário de professor – e o aprendizado dos alunos. Aí esses pais, e a mídia, vão finalmente querer entrar nas escolas para entender como é possível investirmos tanto e colhermos tão pouco. Vão descobrir que a escola brasileira é uma farsa, um depósito de crianças. Verão a quantidade abismal de professores que faltam ao trabalho, que não prescrevem nem corrigem dever de casa, que passam o tempo de aula lendo jornal ou em rede social ou, no melhor dos casos, enchendo o quadro-negro de conteúdo para aluno copiar, como se isso fosse aula. E então vocês serão cobrados. Muito cobrados. Mas, como terão passado décadas apenas pedindo mais, em vez de buscar qualificação, não conseguirão entregar.

Quando isso acontecer, não esperem a ajuda dos atuais defensores de vocês, como políticos de esquerda, dirigentes de ONGs da área e alguns "intelectuais". Sei que em declarações públicas esse pessoal faz juras de amor a vocês. Mas, quando as luzes se apagam e as câmeras param de filmar, eles dizem cobras e lagartos.

Existem muitas coisas que vocês precisarão fazer, na prática, para melhorar a qualidade do ensino, e sobre elas já discorri em alguns livros e artigos aqui. Antes delas, seria bom começarem a remover as barreiras mentais que geram um discurso ilógico e atravancam o progresso. Primeira: se vocês são vítimas que não têm culpa de nada, também não poderão ser os protagonistas que terão responsabilidade pelo sucesso. Se são objetos do processo quando ele dá errado, não poderão ser sujeitos quando ele começar a dar certo. Se vocês querem ser importantes na vitória, precisam assimilar o seu papel na derrota.

Segunda: vocês não podem menosprezar a ciência e os achados da literatura empírica sempre que, como na questão dos salários, eles forem contrários aos interesses de vocês. Ou vocês acreditam em ciência, ou não acreditam. E, se não acreditam – se o que vale é experiência pessoal ou achismo –, então vocês são absolutamente dispensáveis, e podemos escolher na rua qualquer pessoa dotada de bom-senso para cuidar da nossa educação. Vocês são os guardiães e retransmissores do conhecimento acumulado ao longo da história da humanidade. Menosprezar ou relativizar esse conhecimento é cavar a própria cova.

Terceira: parem de vedar a participação de terceiros no debate educacional. É inconsistente com o que vocês mesmos dizem: que o problema da educação brasileira é de falta de envolvimento da sociedade. Quando a sociedade quer participar, vocês precisam encorajá-la, não dizer que só quem vive a rotina de "cuspe e giz" é que pode opinar. Até porque, se cada área só puder ser discutida por quem a pratica, vocês terão de deixar a determinação de salários e investimentos nas mãos de economistas. Acho que não gostarão do resultado...

Quarta: abandonem essa obsessão por salários. Ela está impedindo que vocês vejam todos os outros problemas – seus e dos outros. O discurso sobre salários é inconsistente. Se o aumento de salário melhorar o desempenho, significa que ou vocês estavam desmotivados (o que não casa com o discurso de abnegados tirando leite de pedra) ou que é preciso atrair pessoas de outro perfil para a profissão (o que equivale a dizer que vocês são inúteis irrecuperáveis).

O respeito da sociedade não virá quando vocês tiverem um contracheque mais gordo. Virá se vocês começarem a notar suas próprias carências e lutarem para saná-las, dando ao país o que esperamos de vocês: educação de qualidade para nossos filhos.

Machado de Assis adulterado

 EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE


No país do "pelo menos", onde é aceitável que crianças vendam balas nas ruas, pois isso tem o lado bom de elas não estarem roubando, o desleixo com a educação é cada vez mais proporcional ao comodismo e à falta de preparo e de vontade para enfrentar as dificuldades. A preferência tem sido pela complacência com a baixa qualidade, com a falta de capricho e até com certas desonestidades.
Em vez de corrigir, perdoa-se o erro. Aceita-se o tosco e convive-se com o grosseiro, pois dá menos trabalho que buscar soluções que poderiam enriquecer o conhecimento, estimular a gentileza, melhorar a convivência social e ajudar a predispor as pessoas às boas práticas cidadãs.

Em um país assim, pode-se esperar o absurdo em várias versões. E ele quase sempre ocorre. Apesar disso, não deixa de chocar a iniciativa da escritora de livros infantis Patrícia Secco, que trocou a missão de educar pela tarefa de produzir facilidades em vez de esforço, contornos e escapes em substituição ao aprendizado. Pior: fez isso com dinheiro público, captado pela lei de incentivos do Ministério da Cultura.

No mês que vem, quando a Seleção Brasileira pisar a grama da Arena Itaquerão, para inaugurar os jogos da Copa do Mundo, nada menos que 300 mil exemplares de uma versão adulterada do genial conto (novela, para alguns) O Alienista, obra de ninguém menos do que Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, serão gratuitamente distribuídos em todo o país, em escolas e bibliotecas.

A escritora teve a ideia de "traduzir" o texto de 1882, trocando palavras que ela e sua equipe consideram difíceis por outras mais acessíveis ao leitor atual. Ela afirma não ter visado seu público infantil, mas os jovens ou adultos que, embora alfabetizados, não têm interesse pela leitura de autores clássicos, simplesmente porque os textos contêm palavras que não conhecem.

Partiu, então, para uma adaptação que rouba do leitor, especialmente do menos letrado, a oportunidade de - ao divertir-se com a leveza do texto e as finas ironias do Bruxo do Cosme Velho (como o chamava Carlos Drumond de Andrade) - sair da leitura maior do que entrou. Afinal, mesmo nas histórias sem grande complexidade, como é o caso desse conto, uma das riquezas do autor é a propriedade da narrativa, a inteligência na escolha das palavras, a elegância nas abordagens.

Publicar um Machado sem essas características é empurrar um faz de conta sobre quem deveria e merece ser alvo de especial atenção: o leitor inexperiente, mas potencialmente apto a avançar, a aprender e, mais importante, a ampliar sua capacidade de pensar. Preferiram a autora e os gênios do Ministério da Cultura abrir mão da oportunidade de oferecer ao leitor anotações e até mesmo pequeno glossário que o ajudasse a transformar a escuridão em luz.

Em linha com a infeliz política do nivelamento por baixo, o desaforo de passar Machado de Assis a limpo vai atingir o também clássico e saboroso A pata da gazela, do cearense José de Alencar. Certamente não vão faltar aplausos. Afinal, no Brasil de hoje sobram letrados que acham bobagem conhecer a diferença entre ter e possuir, haver e existir, seguir e continuar.
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Exames sem ideologia

 EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR


Avaliações precisam ser embasadas em conteúdos sólidos e não em interpretações ideologizadas ou simplistas da realidade. Caso contrário, servirão apenas para medir o grau de adesão do aluno a um perfil ideológico predeterminado

Qual é o objetivo de avaliações como o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)? Avaliar os conhecimentos do estudante, tentando mensurar de forma objetiva o seu nível de aprendizagem? Talvez não. Preocupado ao ver que seus alunos não tinham bom desempenho no Enade, o engenheiro e doutor em Economia pela Universidade de Chicago Claudio Haddad resolveu fazer a prova para tentar entender melhor o processo de avaliação. Aliás, fez o mesmo teste duas vezes. Em um deles, ele conta em entrevista à revista Veja, foi mal e errou metade da prova de conhecimentos gerais, mesmo tendo respondido usando os conhecimentos adquiridos durante sua longa carreira acadêmica. Já na segunda vez, marcou as opções que tinham viés ideológico mais forte, imaginando serem as de preferência dos avaliadores. Estava certo: das 8 questões de múltipla escolha, o engenheiro acertou 7.

Em uma das questões, por exemplo, o enunciado perguntava se era correta a afirmação de que “toda pessoa tem direito ao respeito de seus semelhantes, a uma vida digna, a oportunidade de realizar os seus projetos, mesmo que esteja cumprindo pena de privação de liberdade, por ter cometido delito criminal, com trâmite em julgado”. Embora os presos devam ser tratados com humanidade, é no mínimo questionável que tenham o direito de realizar seus projetos. Em muitos casos, aliás, a privação de liberdade tem como efeito positivo justamente evitar que algumas pessoas continuem a colocar em práticas seus projetos criminosos. Mas para quem elaborou a prova do Enade respondida por Haddad, a afirmação está correta. Em outras perguntas do teste, a simplificação exagerada dá margem a interpretações ideologizadas, como na afirmação de que a crise financeira mundial foi desencadeada pelo estouro da bolha de empréstimos especulativos e imobiliários dos mercados americanos e europeus, sem levar em conta os vários outros fatores envolvidos naquele contexto.

Ao promover como corretas interpretações carregadas ideologicamente, exames que deveriam mensurar da forma mais objetiva possível o conhecimento dos alunos passam a mensagem de que determinadas interpretações e posicionamentos ideológicos são as posturas corretas, minando a capacidade de debate e colocando por terra a construção de uma sociedade minimamente plural. Mesmo em escolas onde os professores buscam ensinar sem se deixar levar pelos modismos ideologizantes, aos poucos o “padrão MEC” de avaliação poderá se impor. Afinal, nenhum colégio ou curso preparatório quer que seus alunos não tenham um bom desempenho no Enem. E se isso acontecer, pais e os próprios alunos irão se insurgir, argumentando que o conteúdo ensinado não corresponde ao que é pedido nas avaliações. O risco é que os conteúdos acabem sendo “adaptados” para corresponder às provas, provocando uma distorção perigosa.

Exames de desempenho como o Enem e o Enade são uma importante ferramenta para se avaliar cada estudante, servindo também para mensurar a qualidade do ensino em geral. Só que para poderem cumprir tal papel, as avaliações precisam ser embasadas em conteúdos sólidos e não em interpretações ideologizadas ou simplistas da realidade. Caso contrário, as provas servirão apenas para medir o grau de adesão do aluno a um perfil ideológico predeterminado e não o seu conhecimento. E mais: como os resultados das avaliações são usados como subsídio e justificativa para a elaboração de políticas públicas na área da educação, poderemos ver o próprio Estado – que já é o responsável pela elaboração e aplicação de exames como Enem e Enade – pensando maneiras de alimentar ainda mais a fera do ensino ideologizado.

Avaliar de forma objetiva conteúdos complexos certamente não é fácil e exige tanto daqueles que elaboram quanto dos que corrigem as questões uma preparação e um domínio do tema por vezes incompatíveis com os padrões brasileiros. Entretanto, é o único caminho aceitável. Quando o conhecimento dá lugar ao subjetivismo ideológico, a “achismos” simplistas em vez de conteúdos reais, constrói-se uma geração incapaz de pensar criticamente, que prefere respostas prontas ao embate de ideias e posições. E sem debate não é possível construir uma sociedade melhor.

O inaceitável apagão na distribuição de vacinas e soros


 EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO

É uma situação impensável num país que conseguiu erradicar doenças como a varíola e a poliomielite, graças a eficazes programas de vacinação


Sempre que alguma demanda no sistema de saúde assombra o país, costuma-se buscar as razões do mal em supostas anemias orçamentárias. Nesses momentos, o proverbial diagnóstico de “falta de verbas” para o setor é repetido com a persistência de um clichê. Ou, pela falta de substância, de um bordão. Mas, mitigada pela receita fácil, a busca pela real origem dos sintomas — os crônicos problemas de má administração de recursos e de gestão deficiente — se perde em discussões bizantinas. Não têm sido poucos, na administração pública, mormente no que tange a ações dirigidas de Brasília, os exemplos dessa distorção.

Veja-se o caso da produção e distribuição de soros e vacinas. Por quatro décadas, uma ilha de eficiência em meio ao caos do sistema brasileiro de saúde pública, o Programa Nacional de Imunização está com seus índices de eficácia sob iminente ameaça. Trata-se de um organismo responsável, entre outros feitos, por uma exitosa taxa de 98% de prevenção da população exposta a doenças como sarampo, difteria, tétano e coqueluche. A ameaça se deve menos à escassez de dinheiro para manter a agenda de produção e distribuição de imunizantes e mais à desorganização prevalecente na rede de serviços públicos do país.

Reportagem recente do GLOBO mapeou o preocupante perfil do setor. Os números mostram que está em curso um virtual e inédito — embora dissimulado, por não assumido pelo Ministério da Saúde — racionamento na distribuição de soros e vacinas às secretarias estaduais, responsáveis pelo abastecimento dos órgãos municipais que cuidam da ponta na qual a população é atendida.

São números inaceitáveis num país que conseguiu erradicar doenças como a varíola e a poliomielite graças a eficazes programas de vacinação. Em Pernambuco, Paraná e Maranhão estavam zerados, alguns dias atrás, os estoques de soro antielapídico (contra o veneno da cobra coral); o soro antirrábico humano (contra a raiva) tinha os estoques reduzidos no Distrito Federal, novamente em Pernambuco e Paraná; entre as vacinas afetadas, escasseavam, em diversos estados, a BCG (tuberculose), a tríplice acelular (DTPa, contra tétano, difteria e coqueluche) e a dupla adulto (tétano e difteria).

O governo federal trata o desabastecimento como problema pontual, assim como, no caso específico dos soros, a obrigatoriedade, imposta pela Anvisa aos laboratórios, de a produção passar a ter novos níveis de certificação. Mas, em se tratando de área essencial, quaisquer que sejam as razões desse apagão, o que perpassa a baixa de estoques (quando não a falta total de medicamentos) é o planejamento inconsistente para contornar, que sejam, tais “problemas pontuais” — assunto, portanto, ligado ao gerenciamento. O quadro é preocupante, ainda mais quando se coloca na mesa a carta da Copa como um complicador, em razão das óbvias movimentações de turistas provenientes de diversas partes do mundo.
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